2017-11-24

O juiz Neto de Moura e a separação dos poderes legislativo e judicial



Tem sido muito criticado o acordão do TRP (Tribunal de Relação do Porto) em que foi relator o juiz Neto de Moura, datado de 11.10.2017,  assinado também pela juíza Maria Luísa Arantes e que pode ser encontrado neste link: https://jumpshare.com/v/XmGPjJyBg6mJMdehLjp8 .

O acordão trata das agressões a uma mulher que foi sequestrada e agredida por um ex-amante que depois convocou o ex-marido que por sua vez a agrediu com uma moca com pregos.

O caso fora julgado em tribunal de 1ª instância, que condenara os dois arguidos a penas suspensas de prisão, de pagamento de multas e de uma injunção para que cada um dos arguidos não contactasse a vítima, de cuja decisão recorreu o Ministério Público para o TRP. O TRP manteve a decisão da 1ª instância sem alterações.

Encontrei esta imagem de “Moca com pregos” na internet


Na petição intitulada “Essa Mulher Somos Nós”encontra-se contestação, com a qual concordo, à parte mais polémica do acórdão que continha o texto seguinte:
«
Por outro lado, a conduta do arguido ocorreu num contexto de adultério praticado pela assistente.
Ora, o adultério da mulher é um gravíssimo atentado à honra e dignidade do homem.
Sociedades existem em que a mulher adúltera é alvo de lapidação até à morte.
Na Bíblia, podemos ler que a mulher adúltera deve ser punida com a morte.
Ainda não foi há muito tempo que a lei penal (Código Penal de 1886, artigo 372.0) punia com uma pena pouco mais que simbólica o homem que, achando sua mulher em adultério, nesse acto a matasse.
Com estas referências pretende-se, apenas, acentuar que o adultério da mulher é uma conduta que a sociedade sempre condenou e condena fortemente (e são as mulheres honestas as primeiras a estigmatizar as adúlteras) e por isso vê com alguma compreensão a violência exercida pelo homem traído, vexado e humilhado pela mulher.
Foi a deslealdade e a imoralidade sexual da assistente que fez o arguido X cair em profunda depressão e foi nesse estado depressivo e toldado pela revolta que praticou o acto de agressão, como bem se considerou na sentença recorrida.
Por isso, pela acentuada diminuição da culpa e pelo arrependimento genuíno, podia ter sido ponderada uma atenuação especial da pena para o arguido X.
»

Fui-me documentar na Wikipédia sobre “Adultério” onde diz na secção “História”:
«
O adultério, como "acto de se relacionar com terceiro na constância do casamento", é considerado uma grave violação dos deveres conjugais por quase todas as civilizações de quase toda a história, sendo que algumas sociedades puniam gravemente a cônjuge adúltera e/ou a pessoa com quem praticava o acto, sendo ambos passíveis de morte.

Historicamente e originalmente a prática de adultério é o crime praticado pela esposa em relação ao marido. Hoje em dia, embora tal discriminação não exista mais nas novas leis dos países ocidentais, ou tenha perdido sua eficácia sociológica, na prática do dia a dia a conduta continua a ser vista de forma diferenciada do original conceito.
»
e na secção “Actualidade”:
«...
Em Portugal no actual Código Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 400/82, de 23 de Setembro a palavra adultério não é mencionada numa única passagem.[6] Já no actual Código Civil faz-se apenas referência ao adultério aquando da existência de heranças e respetivos testamentos e é referido no art.º 2196.º que é nula a disposição a favor da pessoa com quem o testador casado cometeu adultério.
»

Trata-se  de mais uma confirmação de que a infidelidade da mulher casada foi legalmente punida com maior rigor do que a do homem.

Foi entre outras também por essa razão que o legislador suprimiu a palavra “adultério” no Código Penal constituindo uma indicação clara que ela deve deixar de ser considerada relevante nos julgamentos de crimes.

Alegar a importância do adultério como atenuante num julgamento em Portugal em 2017, após a retirada da palavra “adultério” do Código Penal representa assim um desrespeito pela lei portuguesa em vigor.

Espera-se que os juízes não se refiram em acórdãos a leis revogadas. Referir leis revogadas é uma forma de dizer que se entende que ainda poderiam/deveriam estar em vigor. Referir leis e costumes de outros países é uma violação do âmbito territorial da aplicação da lei.
O genocídio, a escravatura, o racismo, o machismo, estiveram consagrados em leis noutras épocas e noutros países mas de acordo com a lei em vigor em Portugal todas estas actividades são actualmente intoleráveis.

Poder-se-ia dizer que existe uma analogia dos juízes com os diplomatas. Um diplomata de um país representa no estrangeiro a posição que o seu país tem sobre variados assuntos e não a sua opinião pessoal. Ao juiz compete julgar de acordo com a lei em vigor no país onde exerce a sua função e não segundo a sua opinião pessoal.

Há assim neste caso uma invasão pelo juiz da função do legislador, criando incerteza sobre se o tribunal se rege pelas leis actuais do país ou se o julgamento decorrerá tomando em consideração as leis doutras épocas e doutras terras pelas quais o juiz nutre preferência ou sente a necessidade de referir. Essa ponderação de leis de outras épocas, de outros  países e de várias religiões terá lugar nas considerações do legislador ao criar a lei pois a legislação deve ter em conta o contexto espaço-temporal em que é definida mas ao juiz compete julgar segundo o consenso da comunidade que lhe outorgou o poder de julgar. Caso as suas convicções sejam inconciliáveis com a lei vigente em casos específicos poderá pedir escusa. E se as considerações são figuras de retórica sem consequência na decisão final será preferível que se omitam, quer para poupar tempo a quem tem que ler o acórdão não sendo relator quer para evitar intranquilidade pública como a que se verificou neste caso concreto.

A gravidade deste caso só pode ser julgada por quem tenha capacidade para aferir se estas considerações do juiz afectaram a decisão sobre o caso em julgamento. Mesmo que não tenham tido impacto na decisão final o juiz deveria ser notificado que opiniões pessoais contra a lei existente, mesmo que sejam citações de leis revogadas, de leis de outros países ou de normas religiosas, não têm lugar em acórdãos.

A juíza que segundo a própria “assinou o acórdão após leitura em diagonal” foi negligente, não nos tendo protegido do erro do colega.


Notas de rodapé:

Achei interessante este doc de alunas de direito da Universidade Nova:
Os deveres pessoais dos cônjuges

Googlei (Código Penal) e apareceu-me este link com uma versão consolidada em pdf :
Codigo_Penal_Consolidação_105737277_18-01-2017.pdf
https://dre.pt/web/guest/legislacao-consolidada/-/lc/105737277/201701182138/exportPdf/normal/1/cacheLevelPage?_LegislacaoConsolidada_WAR_drefrontofficeportlet_rp=indice

e o mesmo para Código Civil:
Codigo_Civil_Consolidação_107065833_02-11-2017.pdf
https://dre.pt/web/guest/legislacao-consolidada/-/lc/107065833/201711021032/exportPdf/normal/1/cacheLevelPage?_LegislacaoConsolidada_WAR_drefrontofficeportlet_rp=indice

Por curiosidade procurei, com a ferramenta de busca, no ficheiro do código Penal as palavras adulterio, adultera, adultero, com e sem acento agudo e confirmei com facilidade a inexistência destas palavras, conforme tinha lido na Wikipédia.

Por outro lado, no Código Civil, localizei imediatamente, num pdf de 428 páginas, a única instância de “adultério”, na página 408, no Artigo 2196º, conforme correctamente referido na Wikipédia.

É fácil propalar boatos na net, que não foi aqui o caso, mas é também fácil fazer verificações!



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